sexta-feira, 24 de abril de 2009

CRUEL ILUSÃO DO DESEJO

Livres como o ventre
De uma cadela fecunda
Os anos dilatam.
Sem atrasos, como um relógio
Que não quebra.
Mastigando a vida
Amoleço os ossos do ofício;
Aspiro o incenso das estações
E temo a cada dia,
Na vida que ferve
As portas perras que se abrem.
Tudo está na memória,
Como as rugas na minha cara,
Como as mãos engelhadas,
E o peito mole, encarquilhado.
Incomoda-se o tempo;
O silêncio, o corpo e o sono.
O sangue torna-se espesso.
Tão espesso como os anos,
É agora mais frio que um rio,
Destruído, sem vida por explorar.



Em cada dia que adquiro
Dito palavras à toa.
Palavras amontoadas, revistas
Como se perdesse
A magia dos sentimentos.
Numa ciranda infinita
Viajo pelas sombras
Num desejo de querer bem.
De sorriso aberto,
De gestos delicados,
Invento palavras escondidas
No centro de um anel de luz.
Na cruel ilusão do desejo
Tudo segue o seu passo.
Não me interessa o meu ontem,
O fim da transição…
Aquele terno menino
Que girava lentamente
Com o mundo.
Agora, o livro melancólico,
Entreaberto, prende-me
A um mundo de miragens.
Sou todas as coisas que amo:



O ar, a água, um charco, um templo,
Árvores… muitas árvores.
Afasto por simpatia
O medo e a morte
Que irão certamente espreitar
Como abutres loucos e famintos
Atrás das fendas do silêncio.
Essas fendas que se racham
No começo e no fim
Do meu viver.


in "Tocar o invisível"

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